Entrega sem laivo de pecado*



"É preciso que eu não esqueça, pensei, que fui feliz, que estou sendo feliz mais do que se pode ser. Mas esqueci, sempre esqueci". Clarice Lispector, in Perto do Coração Selvagem.

Caminhamos uns duzentos metros, os pés metidos n’água, afundando na areia sonâmbula — as folhagens escuras dos coqueiros mais lembravam os recantos árabes onde Ben Hur descansava da longa jornada —, até chegarmos. Era um lugar sossegado, bonito — a areia tão branca que os fiapos da lua cheia, refletindo nos grãos alvos, cegavam-nos os olhos. Baixa-mar; alguns pássaros brincavam, na contraluz das ondas molhadas pela maciez do luar marinho.

Convidei-a, cingindo-a, rodeando-a, felino, expectante, para o abraço, e o beijo, e a queda no lençol de grãos molhados. O amor, então, se fez, terno e profundo como nunca.

Amparado pelo deleite que só o gozo pleno oferece, refizemo-nos, mergulhando nas águas mansas do mar. Novo abraço, novo ardente beijo, mais outro gemido fino e líquido de Anantha, uma vez mais visitada por mim. Certamente um golfinho inopinado, que acaso por aquelas águas se aventurasse, perder-se-ia na cálida fragrância exalada pelo botão frenético dela, em chamas. As mechas leoninas de Anantha, molhadas, caíam-lhe sobre os seios morenos. Foi quando, como um tremor de terra, explodi. Ela, mulher agora, eva, pomba, chegou aos prantos — feliz pela partilha, pela entrega sem laivo de pecado.

De modo que, com o amor temperado nas águas, e impulsionada pelas lamentações e delírios alucinantes dos amantes, foi-se esvaindo, altiva e clara como nunca, a noite. Uns fogos incandesceram os longes daquele pedaço lúdico da Baía de Todos os Santos. Até o alvor, assim permanecemos, ora na água, ora na areia...

* excerto do capítulo VI de Anantha

Comentários

Postagens mais visitadas